sexta-feira, 15 de julho de 2011

Ideias de canário-Machado de Assis

Um homem dado a estudos de ornitologia, por nome Macedo, referiu a alguns amigos um caso tão extraordinário que ninguém lhe deu crédito. Alguns chegam a supor que Macedo virou o juízo. Eis aqui o resumo da narração.
No princípio do mês passado, — disse ele, — indo por uma rua,sucedeu que um tílburi à disparada, quase me atirou ao chão. Escapei saltando para dentro de urna loja de belchior. Nem o estrépito do cavalo e do veículo, nem a minha entrada fez levantar o dono do negócio, que cochilava ao fundo, sentado numa cadeira de abrir. Era um frangalho de homem, barba cor de palha suja, a cabeça enfiada em um gorro esfarrapado, que provavelmente não achara comprador. Não se adivinhava nele nenhuma história, como podiam ter alguns dos objetos que vendia, nem se lhe sentia a tristeza austera e desenganada das vidas que foram vidas.
A loja era escura, atulhada das cousas velhas, tortas, rotas, enxovalhadas, enferrujadas que de ordinário se acham em tais casas, tudo naquela meia desordem própria do negócio. Essa mistura, posto que banal, era interessante. Panelas sem tampa, tampas sem panela, botões, sapatos, fechaduras, uma saia preta, chapéus de palha e de pêlo, caixilhos, binóculos, meias casacas, um florete, um cão empalhado, um par de chinelas, luvas, vasos sem nome, dragonas, uma bolsa de veludo, dois cabides, um bodoque, um termômetro, cadeiras, um retrato litografado pelo finado Sisson, um gamão, duas máscaras de arame para o carnaval que há de vir, tudo isso e o mais que não vi ou não me ficou de memória, enchia a loja nas imediações da porta, encostado, pendurado ou exposto em caixas de vidro, igualmente velhas. Lá para dentro, havia outras cousas mais e muitas, e do mesmo aspecto, dominando os objetos grandes, cômodas, cadeiras, camas, uns por cima dos outros, perdidos na escuridão.
Ia a sair, quando vi uma gaiola pendurada da porta. Tão velha como o resto, para ter o mesmo aspecto da desolação geral, faltava lhe estar vazia. Não estava vazia. Dentro pulava um canário.
A cor, a animação e a graça do passarinho davam àquele amontoado de destroços uma nota de vida e de mocidade. Era o último passageiro de algum naufrágio, que ali foi parar íntegro e alegre como dantes. Logo que olhei para ele, entrou a saltar mais abaixo e acima, de poleiro em poleiro, como se quisesse dizer que no meio daquele cemitério brincava um raio de sol. Não atribuo essa imagem ao canário, senão porque falo a gente retórica; em verdade, ele não pensou em cemitério nem sol, segundo me disse depois. Eu, de envolta com o prazer que me trouxe aquela vista, senti-me indignado do destino do pássaro, e murmurei baixinho palavras de azedume.
— Quem seria o dono execrável deste bichinho, que teve ânimo de se desfazer dele por alguns pares de níqueis? Ou que mão indiferente, não querendo guardar esse companheiro de dono defunto, o deu de graça a algum pequeno, que o vendeu para ir jogar uma quiniela?
E o canário, quedando-se em cima do poleiro, trilou isto:
— Quem quer que sejas tu, certamente não estás em teu juízo. Não tive dono execrável, nem fui dado a nenhum menino que me vendesse. São imaginações de pessoa doente; vai-te curar, amigo.
— Como — interrompi eu, sem ter tempo de ficar espantado. Então o teu dono não te vendeu a esta casa? Não foi a miséria ou a ociosidade que te trouxe a este cemitério, como um raio de sol?
— Não sei que seja sol nem cemitério. Se os canários que tens visto usam do primeiro desses nomes, tanto melhor, porque é bonito, mas estou vendo que confundes.
— Perdão, mas tu não vieste para aqui à toa, sem ninguém, salvo se o teu dono foi sempre aquele homem que ali está sentado.
— Que dono? Esse homem que aí está é meu criado, dá-me água e comida todos os dias, com tal regularidade que eu, se devesse pagar-lhe os serviços, não seria com pouco; mas os canários não pagam criados. Em verdade, se o mundo é propriedade dos canários, seria extravagante que eles pagassem o que está no mundo.
Pasmado das respostas, não sabia que mais admirar, se a linguagem, se as idéias. A linguagem, posto me entrasse pelo ouvido como de gente, saía do bicho em trilos engraçados. Olhei em volta de mim, para verificar se estava acordado; a rua era a mesma, a loja era a mesma loja escura, triste e úmida. O canário, movendo a um lado e outro, esperava que eu lhe falasse. Perguntei-lhe então se tinha saudades do espaço azul e infinito.
— Mas, caro homem, trilou o canário, que quer dizer espaço azul e infinito?
— Mas, perdão, que pensas deste mundo? Que cousa é o mundo?
O mundo, redargüiu o canário com certo ar de professor, o mundo é uma loja de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira.
Nisto acordou o velho, e veio a mim arrastando os pés. Perguntou-me se queria comprar o canário. Indaguei se o adquirira, como o resto dos objetos que vendia, e soube que sim, que o comprara a um barbeiro, acompanhado de uma coleção de navalhas.
— As navalhas estão em muito bom uso, concluiu ele.
— Quero só o canário.
Paguei lhe o preço, mandei comprar uma gaiola vasta, circular, de madeira e arame, pintada de branco, e ordenei que a pusessem na varanda da minha casa, donde o passarinho podia ver o jardim, o repuxo e um pouco do céu azul.
Era meu intuito fazer um longo estudo do fenômeno, sem dizer nada a ninguém, até poder assombrar o século com a minha extraordinária descoberta. Comecei por alfabeto a língua do canário, por estudar-lhe a estrutura, as relações com a música, os sentimentos estéticos do bicho, as suas idéias e reminiscências. Feita essa análise filológica e psicológica, entrei propriamente na história dos canários, na origem deles, primeiros séculos, geologia e flora das
ilhas Canárias, se ele tinha conhecimento da navegação, etc. Conversávamos longas horas, eu escrevendo as notas, ele esperando, saltando, trilando.
Não tendo mais família que dois criados, ordenava lhes que não me interrompessem, ainda por motivo de alguma carta ou telegrama urgente, ou visita de importância. Sabendo ambos das minhas ocupações científicas, acharam natural a ordem, e não suspeitaram que o canário e eu nos entendíamos.
Não é mister dizer que dormia pouco, acordava duas e três vezes por noite, passeava à toa, sentia me com febre. Afinal tornava ao trabalho, para reler, acrescentar, emendar. Retifiquei mais de uma observação, — ou por havê-la entendido mal, ou porque ele não a tivesse expresso claramente. A definição do mundo foi uma delas.
Três semanas depois da entrada do canário em minha casa, pedi-lhe que me repetisse a definição do mundo.
— O mundo, respondeu ele, é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira.
Também a linguagem sofreu algumas retificações, e certas conclusões, que me tinham parecido simples, vi que eram temerárias.
Não podia ainda escrever a memória que havia de mandar ao Museu Nacional, ao Instituto Histórico e às universidades alemãs, não porque faltasse matéria, mas para acumular primeiro todas as observações e ratificá-las. Nos últimos dias, não saía de casa, não respondia a cartas, não quis saber de amigos nem parentes. Todo eu era canário. De manhã, um dos criados tinha a seu cargo limpar a gaiola e pôr lhe água e comida. O passarinho não lhe dizia nada, como se soubesse que a esse homem faltava qualquer preparo científico. Também o serviço era o mais sumário do mundo; o criado não era amador de pássaros.
Um sábado amanheci enfermo, a cabeça e a espinha doíam-me. O médico ordenou absoluto repouso; era excesso de estudo, não devia ler nem pensar, não devia saber sequer o que se passava na cidade e no mundo. Assim fiquei cinco dias; no sexto levantei-me, e só então soube que o canário, estando o criado a tratar dele, fugira da gaiola. O meu primeiro gesto foi para esganar o criado; a indignação sufocou-me, caí na cadeira, sem voz, tonto. O culpado defendeu-se, jurou que tivera cuidado, o passarinho é que fugira por astuto.
— Mas não o procuraram?
Procuramos, sim, senhor; a princípio trepou ao telhado, trepei também, ele fugiu, foi para uma árvore, depois escondeu-se não sei onde. Tenho indagado desde ontem, perguntei aos vizinhos, aos chacareiros, ninguém sabe nada.
Padei muito; felizmente, a fadiga estava passada, e com algumas horas pude sair à varanda e ao jardim. Nem sombra de canário. Indaguei, corri, anunciei, e nada. Tinha já recolhido as notas para compor a memória, ainda que truncada e incompleta, quando me sucedeu visitar um amigo, que ocupa uma das mais belas e grandes chácaras dos arrabaldes. Passeávamos nela antes de jantar, quando ouvi trilar esta pergunta:
— Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu?
Era o canário; estava no galho de uma árvore. Imaginem como fiquei, e o que lhe disse. O meu amigo cuidou que eu estivesse doido; mas que me importavam cuidados de amigos?
Falei ao canário com ternura, pedi-lhe que viesse continuar a conversação, naquele nosso mundo composto de um jardim e repuxo, varanda e gaiola branca e circular.
— Que jardim? que repuxo?
— O mundo, meu querido.
— Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor. O mundo, concluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima.
Indignado, retorqui-lhe que, se eu lhe desse crédito, o mundo era tudo; até já fora uma loja de belchior.
— De belchior? trilou ele às bandeiras despregadas. Mas há mesmo lojas de belchior?


Texto extraído do livro “O Alienista e outros contos”, Editora Moderna – São Paulo, 1995, pág. 73.

13 comentários:

  1. Assim como o canário, que descobre o mundo fora de sua gaiola,o homem, através de cada livro lido,pode voar.

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  2. Oi, Cármen!
    Quer dizer que veio deste conto a inspiração para batizar seu blog? Eu não o conhecia. Bem, só me resta parabenizá-la por nos trazer cultura e boa literatura através do Ideias. Quanto ao Machado, por mais que algumas pessoas digam que seus textos possuem uma linguagem ultrapassada, eu me sinto muito bem o lendo. A beleza e a inteligência de seus contos e romances são incontestáveis.
    Abs.

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    1. Olá, Sérgio,
      Obrigada pela participação.
      Tomei a liberdade de adotar o Bruxo do Cosme Velho como patrono deste blog, batizado em homenagem ao conto, como disseste. Sou incondicionalmente admiradora de Machado de Assis e sua obra e também não vejo dificuldades alguma com a linguagem, cada um de seus contos ou narrativa mais longa é um mergulho profundo através dos personagens. A linguagem pode parecer ultrapassada para alguns leitores, mas o comportamento humano, narrador e descrito com propriedade, é sempre o mesmo.
      Abraços.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Olá querida Cármen,

    venho aqui para dizer que é com muita honra que estou participando da sua linda promoção! Adorei o conto, e adorei a idéia também!
    Vejo que fez amizade com o nosso querido Sergio, um amigo fantástico também!
    Sucesso minha querida, muita luz na sua vida!
    Estarei fazendo uma pequena publicação da sua promoção em meu blog viu?
    Beijocas,
    Jéssica Curto
    http://jessicacurto.blogspot.com
    porque o mundo não precisa ser de alguém para ser maravilhoso!!

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  5. Cara, eu adoro Machado.
    Ele não deixa de ser moderno e perspicaz e ainda ao mesmo tempo tão crítico com a sociedade.

    Gostei do post, Carmém.

    Bjo

    Conheça meu blog e siga-o, caso queira.

    http://paposliterarios.blogspot.com.br/

    Abraço

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  6. É uma paixão compartilhada, amigo Thiago. Para mim é um escritor atemporal. Os traços da personalidade humana feitos por ele são fantásticos.
    Obrigado e volte sempre.
    Cármen Machado.

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  7. Adorei!!!
    Já ouvi muita gente dizendo por ai que esse 'tipo' de linguagem é ultrapassada, velha, antiga..Eu não acho isso, para falar a verdade, eu adoro esse tipo de linguagem...Me faz voltar a outras épocas...Não sei porque...
    Mas adorei o texto, e o blog está de parabéns...Convidei umas amigas e elas estão participando do blog também...Parabéns, bjos

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    1. Olá, Dryh!
      Seja muito bem-vinda!
      É um prazer tê-la no grupo. Sinta-se sempre à vontade para participar, comentar e divulgar. Por aqui a temporada de ideias livres está sempre aberta. Grata pelos elogios, este espaço é feito a partir do meu amor pela literatura para ser compartilhado com pessoas como você, senão nada mais seria do que um diário pessoal. Fico muito satisfeita quando comentam e participam. Obrigada pela indicação às amigas também. Não esquece de participar do sorteio, quando chegarmos a 100 amigos aqui no blog, o sorteio será feito pelo Facebook:
      http://www.facebook.com/pages/Ideias-de-can%C3%A1rio/162438773855901
      Bjokk,
      Cáarmen.

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  8. Nossa, adorei o conto, aquele canário personifica muitos comportamentos humanos. Também acho Machado de Assis sempre muito atual!

    Seu Blog está incrível!!

    Estou participando da sua promoção pelo face.

    bjs Marinna

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    1. Olá, Marina!
      Com certeza, o Bruxo do Cosme Velho encontrou resposta pra tudo na ponta de sua "pena". Ler Machado de Assis é sempre aprender mais da alma humana.
      Fico feliz que tenhas gostado, obrigada pelo elogia e volte sempre.
      bjokk,
      Cármen.

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  9. É incrível ver como a escrita de Machado de Assis continua atual. Adoro a ironia e a fineza de raciocínio que são características tão marcantes de suas obras. Os clássicos são muitas vezes considerados difíceis e chatos de ler, não são clássicos à toa e só não agradam àqueles que não se dão a chance de conhecê-los. Não sabem o que estão perdendo.

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    1. Oi, Cris!
      Concordo contigo, é preciso dar uma chance aos clássicos, sempre. Quem não valoriza, só perde boas oportunidades de aumentar sua visão de mundo.
      Obrigada por participar, volte sempre.
      bjokk,
      Cármen.

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